quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Nove para trinta e cinco

Hoje, ao olhar no espelho logo pela manhã, percebi algo diferente.
Não entendi muito bem o que era, já que minha cara era a mesma de todo dia, a cara que ri e que chora e que não consegue esconder nada do que vai no coração.
A cara com que fui ao primeiro encontro, e voltei chateada com medo de não ser agradável.
A cara com que saí no jornal de moda, a cara com que fui a todas as entrevistas de emprego, a cara com a qual eu chorei três dias depois do fora daquele careca. A mesma cara, a cara de todo dia.
Mas tinha algo anormal ali. Porque todo dia eu esperava encontrar beleza nos meus olhos grandes e paciência na minha boca urgente. Ou que pudesse entender que meu nariz, mesmo grande, respira bem e me faz sentir tantos cheiros na memória – uma bênção, digamos. De vez em quando, nem tanto. Mas eu respiro. Respiro e vivo.
E o que será, então, que estava tão na minha cara que eu não conseguia ver?
Olhos grandes e expressivos. A pele de quase 35 anos. A boca que já abençoou e amaldiçoou com arrependimento. A boca que beijou e escarrou, como sugeriu Fernando.
Essa cara de agonia toda vez que me olho e imagino o que eu poderia melhorar, como faria para melhorar, de que lado devo me mostrar.
Mas de repente essa estranheza. Esses olhos enormes me olhando no espelho, cabelo brilhante caindo na testa. Essa franja que foi motivo de zoeira por quase todos os meus amigos. A cor, que também nunca agradou a ninguém.
“Desta cor fica melhor!” “Por que você usa essa franja tão curta?” “Você parece um personagem” “Seu batom parece sujeira de sorvete” “Você é tão engraçada” – dizem. Amigos próximos. Raras vezes me elogiam, sempre achando muita graça da minha chateação. No começo eu ficava triste, até chorava, escondida, com esses olhões.  Eles ficavam vermelhos, me apavoravam no conjunto com o nariz inchado.
Mas isso passou. E eu fui me acostumando com essa cara. Não que eu gostasse dela, mas o costume é uma coisa boa, às vezes.
E hoje, eu tava me olhando, acostumada com tudo isso, e tinha essa coisa estranha. Um conforto no sorriso, um brilho aqui, um carinho por meus pés de galinha. Que lindos olhos!  QUE LINDOS OLHOS! 
E este grito saiu do meu coração. Estranhei.
E o estranho era tudo isso, que eu nunca tinha sentido, não sabia me acostumar com isso.
Logo descobri esse assombro: próximo de completar meus já amados 35, eu acordei me achando bonita.

Nossas mulheres

Uma tem olhos castanhos tão profundos como os abismos das galáxias
A outra carrega todo o verde que cabe num infinito
Uma fala da dor e da delícia de ser mulher
A outra, também
A de olhos castanhos, junta letras que falam de (des)amor
De morte, de solidão
Da falta de sexo, dos excessos
Da fumaça, do inseto, da selvageria do (des)amor
E de mulheres perturbadas
A outra, fala de (des)amor, de morte,
De solidão. Da selvageria do (des)amor
De unicórnios e lírios
E de mulheres perturbadas 
Uma é amiga da outra, como num ciclo que se completa
Num conjunto matemático, numa relação de pertinência

Uma delas me perturba:
Aqueles olhos imensos, puxados, profundos
São muitas as verdades indigestas dela que se parecem comigo
Suas palavras, então, apunhalam meu coração
E esganam a minha garganta, me fazem verter lágrimas de desconforto
Da outra, eu ouço tudo, com menos dor: as histórias da infância, dos bordados
Ouço os unicórnios clamando por amor e decidindo entre a vida e a morte
Eu sinto o gosto das frutas, eu passo horas inventando aquele azul

E eis que as duas nos unem no mesmo ciclo que se completa
Nesse conjunto matemático de pertinência:
Eu e ele, ele e eu.
Nossos dedos alucinados, datilografando as palavras que jorram da nossa alma
Eu sobre uma, ele sobre a outra
E a gente chora e ri, e se espreme na vida entre amor e lágrimas
Vivendo como num conto escrito por elas:
Um unicórnio não tão puro e uma mulher sedenta
Caminhando lado a lado, perdidos de amor
De lágrimas, perturbação
E verdades indigestas
Que a gente digere
Juntos.